Aprenda a Criar Suas Próprias HQs

Oi. Tudo bom?

Eu sou o Giorgio, e estou aqui pra ajudar quem quer produzir histórias em quadrinhos. Vou dar umas dicas do que aprendi esses anos todos. Antes, deixa eu dizer duas coisas.

Primeira: sim, eu entendo um pouco do assunto. Faço HQs esporádica e profissionalmente desde 1991, e publiquei minha primeira história em quadrinhos, no formato de álbum, em 2014 – Rastreadores da Taça Perdida, o segredo da Jules Rimet. Esta aqui.

Segunda: decidi começar este blog por obrigação moral. Se você olhar em volta, pra começar, os meios de comunicação dão mais espaço pra quem critica do que pra quem quer fazer quadrinhos. Por quê? Porque falar é fácil. Qualquer um com espaço num jornal, numa revista ou na internet pode ler um quadrinho e depois escrever ou fazer um vídeo a respeito. Neguim começou a ler quadrinhos ontem e já se acha O Grande Iniciado da Nona Arte.

Faz tempo que eu cansei de ver esse monte de gente se achando no direito de ditar regra sobre o que presta e o que não presta; gente que se diz crítico, gente que tem na ponta da língua a fórmula do sucesso.

Agora pergunta se algum desses publicou um quadrinho na vida.

NUNCA.

Eles não têm coragem pra sentar diante de uma prancheta (ou computador), produzir e dar um jeito de publicar. Vai que alguém detona o trampo deles como eles estão acostumados a detonar o trampo alheio…

Então, como diriam Olavo de Carvalho e Gene Simmons: esqueçam essas pessoas. Se o sujeito não tem nenhuma publicação relevante sobre o tema, ele não tem o direito de falar nada de ninguém.

Os textos que eu vou colocar no blog são pra você que quer realmente fazer quadrinhos, levar isso a sério, botar a mão na massa. Na sua opinião,  o que é mais divertido? Ver uma comédia romântica ou namorar?

Quem respondeu namorar é porque sabe que a teoria não tem chance nenhuma contra a prática. Ou, nas palavras de Morpheus: “Existe uma diferença entre conhecer o caminho e trilhar o caminho”.

Vejo você no próximo texto!

Da Importância do Letreiramento nos Quadrinhos (1).

Olá!

Você saberia citar dois elementos exclusivos Histórias em Quadrinhos? Talvez existam mais… agora, dois deles definem a mídia HQ.  Pense um pouco.

Cuca0001O Extracurricular Cucaracha.

 

Isso mesmo. Os balões e as onomatopeias.

Eles não existem em mais nenhum outro lugar. É verdade que as onomatopeias vêm da literatura e, com alguma pesquisa, podemos encontrar textos em prosa e poesia que lançam mão dessa figura de linguagem. Agora, com esse grau de cumplicidade que aparece nos quadrinhos? Praticamente coadjuvando com personagens? Dificilmente encontraremos algo que chegue perto. E não, não vale citar as onomatopeias do seriado do Batman dos anos 60 nem os quadros do Roy Lichtenstein!

Whaam! 1963 by Roy Lichtenstein 1923-1997

Passei quase a infância toda achando que isso era parte de uma HQ maior.

Alguns estudiosos só definem o surgimento dos quadrinhos a partir do momento em que os balões entram em cena. Estes exemplos abaixo seriam, para alguns, os precursores das HQs.

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Rodolphe Töpffer (1833) – pesquise sobre ele.

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Max und Moritz (1850) – deve haver em pdf…

 

Bom, tivemos bastante teoria, agora vamos passar à prática.

 

Ordem dos balões

Para nós, ocidentais, a leitura se dá da esquerda para a direita, e de cima para baixo. Por mais óbvio que pareça, às vezes os quadrinistas esquecem dessa regra. Daí que você às vezes pode se confundir com a ordem de um diálogo, e precisa ler de novo. Isso é péssimo. Quebra todo o ritmo da história.

Neste quadro da minha HQ O Extracurricular Cucaracha, você lê os balões de cima para baixo e depois da esquerda para a direita. Como eu consegui essa façanha?

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Opa! Spoiler?

Fácil: a distância entre os balões “dribla” a tendência de se ler do lado esquerdo para o lado direito.

Se você tiver alguma dúvida quanto a isso, durante a produção de seu quadrinho, verifique, com um amigo que nunca colocou os olhos neles, se a leitura está seguindo o padrão ou se ele tem dificuldades em acompanhar os diálogos.

 

Peso das palavras

O grande Will Eisner tinha um letrista fora de série em sua equipe. Veja, nestes balões, com que facilidade o texto conduz o leitor. Você nem precisa saber falar inglês para notar as mudanças na entonação de voz dos personagens.

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Neste exemplo, perceba como o balão inflado indica o ego enorme do artista.

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Aqui, a “voz” do narrador ganha uma letra com serifa.

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Sinta a força do drama interno do personagem! Ele está paralisado pelo dilema!

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“Por quê?”

Sem contar as belíssimas composições que Eisner fazia, mesclando desenhos e texto. Quantos autores, hoje em dia, fazem esse tipo de “casamento” artístico?

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Não tenha receio de fazer experimentações nas suas histórias. Busque inspiração em outras linguagens: pintura, arquitetura, dança, poesia, ou até mesmo floricultura! Por que não?

Semana que vem vamos abordar as onomatopeias. Enquanto isso, visite estes dois sites para baixar letras. Sim, baixar. Hoje em dia, quem faz as letras dos quadrinhos  à mão? Muito pouca gente.

Hoje vou fugir, embora não muito, do tema. Vocês deixam?

 

Olá!

Para mim não existe nada mais chato nos dias de hoje do que o patrulhamento ideológico. Não se pode brincar com isso, não se pode fazer piada com aquilo, tal assunto é delicado, esta outra coisa aqui é tabu. De alguns anos para cá, a televisão aberta e a Internet tornaram-se terreno fértil para esse tipo de panaquice.

Do que estou falando? Dessa maldição da vida moderna, o politicamente correto.

Acusado por uns e outros de ajudar a promover a tendência, o comediante britânico John Cleese afirmou recentemente que o politicamente correto é invenção de pessoas que não conseguem lidar com as próprias emoções e, por isso, desejam reprimir as emoções das outras pessoas a qualquer custo; o escritor Michael Crichton (1942-2008), nos anos 1990, proferiu uma frase muito verdadeira: “Quem quer o politicamente correto não quer mudar nada”.

Tá, mas qual a relação entre isso e as histórias em quadrinho?

Chego lá, ansioso(a)!

O politicamente correto é uma forma mesquinha, sutil e cruel de reprimir a criatividade e destruir o humor. De inocular o medo. E nós, como autores, não podemos, de forma alguma, ter medo. A partir do instante em que você se definiu como artista, a rebeldia faz parte do seu DNA. Para seu próprio bem, proíba a si próprio de baixar a cabeça para qualquer tipo de repressão ou cerceamento de sua criatividade.

Quando surgir alguma dúvida sobre como abordar um assunto delicado, apele, sempre, para o bom-senso e o bom gosto. Aprenda a escutar sua intuição.

Por exemplo, zoar com algum gordo na escola é uma coisa. Partir para a agressão física porque a pessoa é diferente demonstra falta de inteligência. Agora, se você é o alvo da zoação, use o cérebro e responda com uma zoação pior ainda. É uma das lições que ensino no álbum O Extracurricular Cucaracha.

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Lucky Luke, uma das vítimas do politicamente correto. Ele não fuma mais, só masca capim. Ainda bem que ficou só nisso.

Existe vida inteligente no politicamente correto?

Felizmente, sim. Digamos que, na sua história, há pelo menos cinco personagens. Nenhum problema se um deles seja negro, oriental ou portador de alguma deficiência. Isso pode enriquecê-los de alguma forma, aprimorar a trama e levá-la por um caminho diferente. Nas minhas HQs eu procuro colocar ao menos um ou dois negros como personagens de destaque.

Lembra quando eu falei sobre fazer pesquisas? Você pode sofisticar essa ferramenta: antes de colocar algum assunto na sua narrativa, veja se está usando a abordagem certa. Se for alguma brincadeira, procure saber se ficou ou não ofensiva.

Certa vez bolei uma tira sobre um super-herói judeu que não combatia o crime aos sábados, pois, sabidamente, nesse dia, os judeus, em honra a Deus, que descansou no sétimo dia, não trabalham. Mostrei a tira a um amigo judeu e ele não se sentiu ofendido de maneira alguma. Disse que tinha gostado da piada, inclusive.

Ninguém disse que é fácil. Vida de artista nunca é.

Então, futuro quadrinista, me prometa o seguinte:

  • Jamais tenha medo de criar.
  • Se errar na dose, admita e peça desculpas.
  • E me ajude, por favor, a combater essa inutilidade chamada politicamente correto.

Abração e até semana que vem!

Persiga seu próprio estilo

Olá!

Dois dos meus sobrinhos passaram um tempo aqui em casa. Um deles me fez ressuscitar uma brincadeira de quando eu tinha menos idade do que eles: colocar uma folha de papel vegetal por cima de uma revista em quadrinhos e passar o lápis por cima dos desenhos. Diversão garantida por algumas horas para um deles, com nove anos, como foi para mim, aos sete.

Naquela época, sem saber, estava fazendo uma espécie de treino para quando fosse desenhar minhas próprias criações.

Já ouvi mais de um profissional afirmar que, para quem quer começar a desenhar, a dica é “pegar seu artista favorito e copiar o estilo dele”. Isso, no entanto é apenas metade da dica que um profissional deveria dar. Se você quer mesmo seguir carreira com HQs, não se torne uma máquina xerox viva do seu ídolo! Procure pelo seu estilo! Para isso, você não pode se fixar numa única influência, e sim no máximo delas. Quantas quiser, desde que não seja apenas uma. Faça disso uma busca séria, nem que leve a vida toda.

Posso afirmar que os quadrinistas que ajudaram a moldar meu estilo foram Francisco Ibañez, Benito Jacovitti, Albert Uderzo e Phillipe Tome. Acabei encontrando meu próprio caminho, a ponto de algumas pessoas afirmarem que meu traço “não tem nada que haver” com os desses artistas. Julgue você mesmo

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De cá pra lá: Ibañez, Jacovitti e Uderzo. Abaixo, Tome.

 

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É sério isso!

O que digo aqui tem mais importância e profundidade do que parece. Em nosso país, aparentemente, somos doutrinados a imitar tudo que vem de fora. É proibido ser original! Fixam na nossa cabeça o pensamento tacanho do “Nada se cria, tudo se copia”; isso, somado a uma preguiça atávica de se informar, pesquisar e quebrar a cabeça, resulta nesse turbilhão de plágios descarados que a gente vê em novelas, filmes nacionais, comerciais de TV e personagens de quadrinhos.

No ramo da música, a coisa só piora, com as versões brasileiras de sucessos internacionais do passado ou do presente. Existia um temo, antigamente, para esse tipo de comportamento: macaco de imitação. Hoje em dia, com a informação muito mais acessível do que há vinte anos (mais ou menos quando a Internet surgiu, 1994), não existe mais desculpa para alguém não ir atrás do que quer.

OPS! Já ia esquecendo!

O lema do blog é “Não critique quem faz: faça!” Bom, melhor voltar ao nosso assunto…!

Falei em buscar o próprio estilo como quadrinista. Faltou mencionar que o mesmo se aplica ao seu roteiro e à sua diagramação de página. Isso é um estudo em paralelo. Autores como Will Eisner e Scott McCLoud publicaram obras que dissecam a linguagem das HQs. No entanto, ler coisas diferentes para assimilar também ajuda.

Pesquise sobre quadrinhos europeus em sites como Ndrangheta e Tralhas Várias. Ali existe muito material que talvez nunca chegue ao Brasil, mas que você pode baixar na sua máquina. No caso de você gostar, pode tentar comprar pela Internet também.

Só não falo dos mangás e dos manhwas (seus correspondentes coreanos cuja pronúncia é parecida), porque são mais fáceis de encontrar por aqui.

Empenhe-se! A ideia original, o traço personalizado e a diagramação inédita vão aparecer! Basta você trabalhar direito e com vontade.

Espero que tenham gostado de mais essas dicas.

Abraços e até a próxima semana!

Dia do Quadrinho Nacional, não teremos aulas nem dicas. Quer ler o texto assim mesmo?

 

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O 30 de janeiro tem um sabor diferente para mim, por dois motivos. Por ser o Dia do Quadrinho Nacional e porque, naquele mesmo dia, em 1994, meu pai faleceu. E ele também era um apaixonado por quadrinhos.

Garoto nos anos 1930 e 1940, Giorgio Cappelli (sim, temos o mesmo nome) era nerd antes de esse termo, e até mesmo o conceito, existirem. Tinha coleções de revistas de quadrinhos – acabei herdando muitas das que não sumiram -, era fã de Will Eisner, Alex Raymond, Milton Caniff, Guido Crepax, Hugo Pratt, Hergé, Moebius… Quadrinho de super-herói? Nem chegava perto. Em termos de vilões cruéis e psicopatas, preferia os inimigos do Dick Tracy aos do Batman.

Se deixassem, passava horas conversando sobre filmes e histórias em quadrinhos. Quando tinha um tempo livre, ia até seu escritório, nos fundos da nossa casa, e ficava desenhando as aventuras de seus personagens. Havia um policial, cujo nome não me recordo, e outros dois com os quais ele passava mais tempo: Cris Colom (uma espécie de Flash Gordon nacional) e Ércio Rocha (fortemente influenciado pelas séries Tintim e Terry e os Piratas).

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Lá pelo início dos anos 1990, Ércio Rocha conseguiu um espaço como tirinhas diárias no extinto jornal paulistano Notícias Populares. Não sei como meu pai conseguia, já idoso, depois de um dia de trabalho num escritório de arquitetura, chegar em casa, jantar e produzir as historinhas do personagem.

Em 1992, o Governo Federal resolveu multá-lo com uma dívida de imposto de renda cujo valor dava para comprar uma casa. Embora o erro fosse deles, a corda, como se diz, sempre rompe no lado mais fraco.

Desgostoso e já com uma certa idade (tinha 65 anos), resolveu produzir e vender um fanzine “só pela diversão”. Aproveitou as tiras já prontas e somou a um material inédito.  Batizou o fanzine de Ércio Rocha e apresentou outros personagens: Minuano, um faroeste gaúcho; Jose, uma jornalista que se vê abduzida por fêmeas humanoides extraterrestres; e a série Um Conto de Natal, que reinterpreta a concepção e o nascimento de Jesus Cristo sob o ponto de vista de um Arcanjo Gabriel… alienígena!

Gostaria de poder contar aqui alguma história bacana entre meu pai e eu. Mas se fizesse isso, estaria inventando. Nunca nos demos bem. Aos 27 anos, saí de casa para morar no Mato Grosso. Durante oito meses, conversávamos por correspondência.

Voltei para passar o natal com minha família, e percebi que a distância saudável acabou me aproximando de meu pai. Infelizmente, ele se foi pouco mais de um mês depois. O lado bom dessa história é que aprendemos a nos entender e, melhor ainda, respeitar nossas diferenças.

O 30 de janeiro sempre trará, para mim, um sentimento dúbio de alegria e saudade.

Peço desculpas pelo desabafo.

Nos vemos na próxima semana.

Criando seu próprio universo

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Tão importante quanto ter um ou vários personagens bem construídos, você precisa saber também onde eles estão pondo os pés. Ao descrevermos o espaço em que vivem, a realidade que enfrentam, sua rotina, estamos criando um mundo onde nossos personagens vão viver.

Empregue um tempo nisso. Nada de preguiça! Pergunte-se onde seus personagens vivem. Numa cidade grande ou pequena? No campo ou numa estação em órbita de algum planeta? Na Terra ou em algum sistema planetário que você inventou? Num cenário pós-apocalíptico, numa era vitoriana steampunk ou numa realidade de fantasia estilo RPG? Na selva do período Cretáceo ou a bordo de uma nave espacial? Num navio pirata ou num apartamento de dois dormitórios? Estão vivendo num momento histórico do presente ou do passado?

As opções são inúmeras. Se nenhuma dessas agradou, faça uma pesquisa. Vai que você inventa algo totalmente inédito e diferente? Estou torcendo pra isso.

O Macro e o Micro Universo

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Um personagem pode ter uma ou várias esferas de influência, ou ser influenciado pelo que acontece a seu redor. Por exemplo, o presidente de um país tem uma influência muito mais extensa do que uma garota de 13 anos que mora com os pais, convive com seus amigos e amigas e vai à escola.

Se considerarmos ambos os personagens – presidente e garota – dentro de um só universo e compararmos suas realidades, o presidente se encontra num macro universo e a garota, num micro universo.

E se algo acontecesse e o presidente e essa garota travassem algum tipo de contato? Dependendo de como se desenvolve a história, ela pode ou não passar a ter alguma influência. Uma coisa, porém, é certa: o universo da garota ficará bem mais amplo.

Na minha HQ O Extracurricular Cucaracha, existem esses dois universos. No micro, temos o dia a dia de garotos e garotas que frequentam a Escola Santa Cola. Essa instituição tem, entre seus alunos, um jovem mago, um cavaleiro medieval adolescente, uma vampira teen, um menino caçador de monstros, aprendizes de ninja e até mesmo um robô e um alienígena. No meio de tantos personagens secundários bizarros, não fica tão estranho se um ou outro se tornarem super-heróis. Pois é o que acontece: um dos garotos ganha poderes de barata!

Já no macro universo dessa HQ, vemos: dois clãs ninjas, uma sociedade secreta, uma madre superiora com um passado nada ortodoxo (ela luta sumô) e uma escola aparentemente católica com bastidores misteriosos (algo que se percebe na própria arquitetura do local, que não tem lá muita cara de “colégio católico”).

Você não precisa apresentar todos os detalhes para seu leitor, mas precisa deles para sua obra ficar mais consistente. Acredite, desenvolver tudo isso vai facilitar seu trabalho e até apresentar-lhe mais opções e alternativas para “viajar” no seu mundo.

Descreva seu universo em “fichas” ou “arquivos” separados. Conte “a história antes da história’ dele (lembra disto?). Exemplifique para você mesmo as situações, os locais, os tipos que contracenam com seus personagens (numa HQ de fantasia, seu protagonista pode ser uma fada em meio a orcs, elfos, sereias, humanos, cavaleiros…).

Capriche nesse ponto e, sem dúvida, escrever suas histórias ficará mais fácil e bem mais divertido.

Até a próxima semana!

 

 

 

Clichês e estereótipos – duas pragas a evitar

 

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Não há nada que me incomode mais numa história do que eu adivinhar o que vai acontecer. Detesto coisas previsíveis. Sabe aqueles filmes ou quadrinhos em que o protagonista se encontra numa situação complicadíssima, uma encrenca feia, correndo risco de morrer… e aí acorda?

Ou então aquele personagem com óculos fundo de garrafa e várias canetas no bolso da camisa, geralmente abotoada até o pescoço?

Senhoritas e senhoritos, apresento-lhes a dupla Clichê e Estereótipo!

O que é clichê?

O significado original de clichê vem da imprensa. Antes que os computadores passassem a ser utilizados na produção de qualquer tipo de texto, os profissionais usavam placas metálicas com palavras de um texto e/ou imagens em relevo; esse material, tão logo organizado, era impresso em papel. Era usado várias vezes. Daí para clichê passar a significar “coisa repetitiva”, “lugar comum” ou “chavão” não precisou muito.

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O exemplo citado, do personagem que acorda e percebe que “tudo não passou de um sonho”, é invenção do autor britânico Lewis Carroll. Pesquise sobre as obras dele. Se eu contar o nome do livro, estarei dando um spoiler danado.

Existem trocentos clichês por aí: o do personagem coitadinho que ganha poderes e vira herói (Harry Potter, Homem-Aranha, O Máskara…); o do protagonista que encontra seu sósia malvado; o do personagem que descobre que vai morrer e parte para atos edificantes até descobrir que não vai morrer; o do mocinho que é acusado de um crime que não cometeu e tem que fugir de meio mundo até provar sua inocência; o do herói que  descobre quem é o culpado pelo crime, e antes de morrer, o criminoso confesso explica suas motivações e seus planos, dando chance para o herói se safar; o casal que começa a história se odiando e acaba se apaixonando.

Clichê tem de montão por aí. Não se preocupe em pesquisá-los, porque você tem a vida inteira pela frente e, acredite: qualquer hora você vai esbarrar com eles!

Quer mesmo escrever histórias bacanas? Fuja dessa porcaria.

Por exemplo, colocar seu personagem sofrendo só pra ganhar a simpatia do leitor é um truque muito baixo. Em vez disso, crie um personagem simpático. Ou divertido. Ou inteligente. Vale até fazê-lo dar o troco em quem aprontou com ele.

Outra opção é subverter o clichê. Deixe todo mundo pensar que vai acontecer uma coisa e evite que a “coisa” aconteça. Um sujeito mordido por um vampiro se transforma não num monstro, mas num sanguessuga tímido. O ajudante do vilão que de repente se mostra mais esperto que seu chefe. Um marido machão que acha que manda em casa, sem perceber que a esposa o tem na palma da mão e é ele quem a obedece. As opções são quase infinitas, e a diversão, garantida. Um exemplo de subversão de clichês é minha HQ O Extracurricular Cucaracha. Novamente, não posso falar nada porque senão estraga a surpresa.

E estereótipo?

Aqui temos um assunto bem delicado. De uns anos para cá, percebi que as pessoas estão se transformando em estereótipos ambulantes. Tem-se a impressão de que personagens que víamos em quadrinhos, no cinema, nos comerciais de TV e em novelas decidiram criar três dimensões só para nos assombrar: o roqueiro de cabelo comprido que só se veste de preto com camiseta de banda; a moça masculinizada acima do peso, de cabelo curto e óculos de armação grossa; o adolescente de boné, óculos escuros, camiseta “Xing Ling”, bermuda e tênis; o religioso de cabelo bem curtinho, camisa com gravata, calça social e Bíblia na mão. Alguns desses estereótipos andam em grupos, vestidos exatamente da mesma forma, com algumas variações. Dependendo de onde mora, garanto que você consegue identificar algumas dessas pessoas.

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Estereótipos são cansativos e podem gerar a antipatia no seu leitor.

Mais uma vez, o truque consiste em subverter.

Em vez da loira burra, que tal uma mulher muito bonita e muito engraçada? Em vez do atleta fortão que faz bullying nos outros, um sujeito musculoso, bom de briga e nerd? Ou um mocinho nem tão certinho contra um vilão nem tão malvado?

Criar personagens assim é bem divertido. Acredite!

O melhor de tudo é que, quando quebramos os clichês e os estereótipos, sabe o que acontece? Além de sermos originais, a gente contribui pra diminuir os preconceitos.

Até semana que vem!

Vícios que você pode (e deve) perder

1) Não faça sua HQ sem saber pra quem

Bila 1A

Enquanto estiver bolando sua história em quadrinhos, tenha sempre em mente o leitor dela. Pra quem você está escrevendo? Homens? Mulheres? Crianças? Adolescentes? Adultos? Religiosos? Ateus? Marinheiros? Bombeiros? Presidiários?

Conheço uma revista em quadrinhos – cujo nome prefiro não mencionar – que não me agrada por uma série de fatores. Embora ache a ideia boa, sinto que é mal trabalhada. Talvez me desagrade porque eu não seja o público-alvo. Mas por mais que eu me esforce, não consigo imaginar quem seria! Tenho uma forte suspeita de que nem o autor sabe!

2) Não deixe sua HQ envelhecer

A noiva mumificada

Desde que me conheço por “escritor-quadrinista”, vivo me perguntando por que certos filmes, quadrinhos, romances etc. ficam “datados” depois de um tempo, ao passo que outros continuam atuais, como se tivessem sido feitos ontem. Após matutar muito, percebi que envelhecem as histórias que tratam de assuntos passageiros, modinhas descartáveis ou se fixam demais na própria época em que foram criadas. Os que falam sobre coisas que sempre existiram e sempre existirão – relacionamentos, situações tipicamente humanas, defeitos e virtudes, intrigas, picuinhas, religiões etc. – conseguem atravessar décadas imunes à passagem do tempo.

Lamento informar que não encontrei uma “receita infalível” para a longevidade de uma narrativa; apenas percebi que histórias com um pé no que existe de mais humano em cada um de nós conseguem conservar-se atuais muito melhor do que aquelas centradas no descartável e no esquecível.

Consegui defender minha posição?

3) Não pense localmente

Jackie Chan

Sabe quais as semelhanças e as diferenças entre o Jackie Chan, o Chaves e Os Trapalhões? As semelhanças: todos fazem humor. As diferenças: Jackie Chan é conhecido mundialmente, Chaves é famoso na América Latina e os Trapalhões são célebres apenas no Brasil (talvez em Portugal).

Um dos maiores “pecados” dos nossos artistas e profissionais do entretenimento é que eles só produzem para o público local. Praticamente ninguém se preocupa em criar um material “tipo exportação”. O nome disso é preguiça.

Independentemente do seu público-alvo (repetindo: homens, mulheres, crianças, adolescentes, adultos… ) faça um esforço: fale para a maior plateia possível. Imagine: “Será que vão entender essa parte da história fora do Brasil?”

Se a resposta for “não”, use um artifício chamado contexto. Explique para as pessoas o que está acontecendo. Na minha HQ Rastreadores da Taça Perdida, que trata de dois aventureiros que vão atrás da Taça Jules Rimet, logo nas primeiras páginas eu apresento uma versão fantasiosa de quando, onde e como o troféu foi roubado – assim, quem nunca ouviu falar desse fato acaba entendendo a importância da Jules Rimet para o futebol e compreendendo os motivos pelos quais os protagonistas são contratados para encontrar a Taça Perdida.

Isso se chama contextualizar o leitor.

Em geral, brasileiros torcem o nariz para contextos. Querem entrar no meio da sessão de cinema e entender a história já começada.

Não faça isso com você mesmo, nem com seu público. Pegue na mão dele e conduza-o por todo o caminho. Só tome cuidado para não entregar tudo mastigadinho. Surpreenda-o de vez em quando.

Abraços e até semana que vem!

A Jornada do herói – Parte 2

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Joseph Campbell

Semana passada falamos da Jornada do herói de Joseph Campbell. Desta vez, ficaremos com O Paradigma de Vladmir Propp, que é semelhante.

Enquanto Campbell definiu a Jornada com base em contos de fadas, lendas e mitologias universais, Propp estudou os contos folclóricos russos, identificando, neles, os elementos básicos da narrativa. Esses elementos são apresentados em sua obra  Morfologia do Conto Maravilhoso.

Vamos a eles!

  1. DISTANCIAMENTO: um membro da família deixa o lar (o Herói é apresentado);
  2. PROIBIÇÃO: uma interdição é feita ao Herói (“não vá lá”/ “vá a este lugar”);
  3. INFRAÇÃO: a interdição é violada (o Vilão entra na história);
  4. INVESTIGAÇÃO: o Vilão faz uma tentativa de aproximação/reconhecimento (ou tenta encontrar os filhos, as joias, ou a vítima interroga o Vilão);
  5. DELAÇÃO: o Vilão consegue informação sobre a vítima;
  6. ARMADILHA: o Vilão tenta enganar a vítima para tomar posse dela ou de seus pertences (ou seus filhos); o Vilão está traiçoeiramente disfarçado para tentar ganhar confiança;
  7. CONIVÊNCIA: a vítima deixa-se enganar e acaba ajudando o inimigo involuntariamente;
  8. CULPA: o Vilão causa algum mal a um membro da família do Herói; alternativamente, um membro da família deseja ou sente falta de algo (poção mágica etc.);
  9. MEDIAÇÃO: o infortúnio ou a falta chegam ao conhecimento do Herói (ele é enviado a algum lugar, ouve pedidos de ajuda etc.);
  10. CONSENSO/CASTIGO: o Herói recebe uma sanção ou punição;
  11. PARTIDA DO HERÓI: o Herói sai de casa;
  12. SUBMISSÃO/PROVAÇÃO: o Herói é testado pelo Ajudante, preparado para seu aprendizado ou para receber a magia;
  13. REAÇÃO: o Herói reage ao teste (falha/passa, realiza algum feito etc.);
  14. FORNECIMENTO DE MAGIA: o Herói adquire magia ou poderes mágicos;
  15. TRANSFERÊNCIA: o Herói é transferido ou levado para perto do objeto de sua busca;
  16. CONFRONTO: o Herói e o Vilão se enfrentam em combate direto;
  17. HERÓI ASSINALADO: ganha uma cicatriz, ou marca, ou ferimento;
  18. VITÓRIA sobre o Antagonista;
  19. REMOÇÃO DO CASTIGO/CULPA: o infortúnio que o Vilão tinha provocado é desfeito;
  20. RETORNO DO HERÓI: (a maior parte da narrativas termina aqui, mas Propp identifica uma possível continuação);
  21. PERSEGUIÇÃO: o Herói é perseguido (ou sofre tentativa de assassinato);
  22. O HERÓI SE SALVA, ou é resgatado da perseguição;
  23. O HERÓI CHEGA INCÓGNITO EM CASA ou em outro país;
  24. PRETENSÃO DO FALSO HERÓI, que finge ser o Herói;
  25. PROVAÇÃO: ao Herói é imposto um dever difícil;
  26. EXECUÇÃO DO DEVER: o Herói é bem-sucedido;
  27. RECONHECIMENTO DO HERÓI (pela marca/cicatriz que recebeu);
  28. O Falso Herói é exposto/desmascarado;
  29. TRANSFIGURAÇÃO DO HERÓI;
  30. PUNIÇÃO DO ANTAGONISTA;
  31. NÚPCIAS DO HERÓI: o Herói se casa ou ascende ao trono.

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Vladimir Propp

 

Embora os contos de fada analisados por Propp não tivessem necessariamente todos as funções apresentadas acima, invariavelmente seguiam o sequência acima apresentada. Um conto de fadas poderia muito bem apenas conter os itens 3, 7, 8, 11 e 31 da lista.

E não para por aí, não! O russo não sossegou com esses itens e ainda descobriu sete tipos de personagens, de acordo com sua esfera de ação!

1ª Esfera – O Agressor – o que faz mal;
2ª Esfera – O Doador – o que dá o objeto mágico ao herói;
3ª Esfera – O Auxiliar – que ajuda o herói no seu percurso;
4ª Esfera – A Princesa e o Pai – não tem de ser obrigatoriamente o Rei;
5ª Esfera – O Mandador – aquele que manda;
6ª Esfera – O Herói;
7ª Esfera – O Falso Herói.

 

Ufa!

Pessoalmente, acho que Joseph Campbell, por se ater um material mais amplo, acabou percebendo um esquema mais enxuto e mais abrangente. O que não desmerece o trabalho de Vladimir Propp.

Só uma dica: não se prenda a nenhuma formulinha quando for escrever. É bom saber que ela existe, mas, ao fazer sua história, não pense em encaixá-la em todos os itens. Deixe o barco fluir. Acredite,  “colar” de esquemas preestabelecidos só vai deixar sua história fria e impessoal. Mesmo inconscientemente, o leitor vai perceber sua artimanha.

Um abraço a todos e um ótimo 2016!

A Jornada do Herói – parte 1

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Você, que escolheu ser escritor ou quadrinista, abraçou uma opção bem séria: passar a vida contando histórias para entreter ou divertir as pessoas. Por causa disso, cedo ou tarde vai acabar encontrando dois nomes: Joseph Campbell e Vladimir Propp. O quanto antes conhecê-los, melhor. Infelizmente, cabe a mim o papel de vilão que vai lhe apresentar esses dois. Já, já, você entenderá isso.

Joseph Campbell e Vladimir Propp são os maiores estraga-prazeres da história – em mais de um sentido que essa frase pode abranger. Ambos estudaram lendas, mitologias, contos de fadas, literatura clássica mundial e descobriram que todas essas narrativas têm pontos em comum, que acabamos encontrando também nos livros, nos quadrinhos e no cinema. Campbell nomeou essa narrativa com pontos em comum de A Jornada do Herói. Vladimir Propp criou O Paradigma que leva seu nome.

Vejamos primeiro a descoberta de Campbell.

Em A Jornada do Herói, encontramos o personagem em seu mundo cotidiano. Lá está ele, todo contente e sossegado, curtindo (ou não) sua rotina. De repente, algo acontece, algo que necessita sua total atenção: é o chamado para a aventura.

Em um primeiro momento, o personagem não sabe se atende ou não a esse chamado. É a recusa. Mas estamos falando de obrigações, estamos falando de aventura, então ele não tem que querer nada. Vai atender ao chamado e ponto final.

O personagem/herói sai de seu mundo cotidiano e encontra um mentor. Um mestre, alguém mais velho, que irá transmitir-lhe ensinamentos. Em seguida, os amigos, os companheiros, e para história não ficar chata, os inimigos, as dificuldades, o grande desafio a ser vencido.

Resolvidos esses problemas, o personagem ganha um prêmio, uma recompensa. É a hora de voltar para casa. Só que não volta sozinho – traz consigo essa recompensa, que será de grande benefício para todos.

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Agora pense no seu quadrinho, livro ou filme favorito. Veja-o se encaixar nos itens abaixo.

  • O mundo cotidiano.
  • O chamado para a aventura.
  • A recusa ao chamado/dúvida.
  • A saída do mundo cotidiano.
  • O encontro com o mentor.
  • Amigos, aliados, inimigos, dificuldades, provas, desafios a serem vencidos.
  • Resolução do problema e recompensa.
  • A volta para casa com a recompensa que beneficia a todos.

Alguns desses itens podem variar um pouco. A recusa ao chamado não precisa exatamente partir do herói. Alguém próximo pode impedi-lo. Apenas ele, porém, tem a obrigação de romper esse obstáculo. O mentor não é necessariamente o “mestre sábio de barbas brancas” – a situação em que o personagem se mete pode muito bem fazer esse papel na aventura.

Talvez você tenha percebido uma coisa. Mesmo em histórias mais “paradas”, em que não haja um pingo de ação, correrias, perseguições, explosões, tiroteios, lutas, cenas de perigo ou o que quer que seja – nessas, também o personagem passará por todas as etapas da Jornada do Herói. Sabe por quê?

Porque a Jornada do herói nada mais é do que uma metáfora do amadurecimento. Quer ver? Pense na sua vida até aqui.

Você não vai precisar de muito esforço para recordar alguma época em que passou por essas etapas. Mudança de endereço, mudança de escola, falecimento de alguém próximo, alguma viagem inesperada… sempre saímos da rotina, enfrentamos dificuldades, conhecemos alguém e voltamos para casa.

Com um detalhe: a pessoa que você era antes do chamado da aventura não é mais a mesma que voltou para casa. Você amadureceu.

Semana que vem voltamos com o Paradigma de Vladimir Propp.